o contrato - conto
O CONTRATO Conheci Alessandro no jardim da infância. No primeiro dia em que nos vimos, percebemos que tínhamos afinidade, e logo, nós nos tornaríamos amigos. Conversávamos muito e éramos os primeiros da classe. Acredito que o fato de sermos inteligentes, fazia com que detestássemos as explicações repetitivas dadas para os outros colegas. E a professora sempre, ou melhor, a tia nos separava, mas não adiantava. Fazíamos bilhetes, usávamos mímica. Reunião de pais e mestres a mesma coisa: ‘são os melhores’, diziam aos nossos pais, ‘mas precisam conversar menos.’ Sempre achei a educação como instituição do saber uma forma de coerção, e não foi por isso que deixei a faculdade pela metade. Foram vários motivos. Não vou discorrer sobre eles. Não valem a pena. Preciso, no entanto, relatar que após terminarmos o ginásio, nós, Alessandro e eu, nos distanciamos, embora morássemos perto um do outro. Escolas diferentes, amigos e colegas diferentes, novas diabruras, namoradas, paixões, quedas e outras asneiras como preâmbulo da vida adulta. E lá estávamos mais uma vez a nos encontrar, no pátio da igreja, em que eu me casaria com Jordânia. Ele acompanhava a mãe a uma missa de sétimo de dia de um parente distante. Alessandro apenas freqüentava a igreja nessas ocasiões, quando não havia escapatória: resquício de uma adolescência mal-construída ou fadada ao ceticismo. Cumprimentamo-nos, forte abraço, mesma amizade, renovada, adulta. Usava um terno elegante escuro e usava óculos redondos. Olhos atentos a tudo, voz solene, mãos delicadas e gentis. Sua mãe, a mesma candura de sempre. E o padre entoava cânticos e leituras, enquanto nós conversávamos. Tínhamos muito que pôr em dia. Desci do carro, angustiado como sempre, sabendo que nada seria diferente no elevador, ao olhar-me no espelho do corredor do meu andar, ou tentar dormir em frente à televisão. Leituras acadêmicas, filmes antigos, revistas de economia, poesia e prosa, nada adiantava. Já não dormia bem há alguns anos. Sabia disso e não procurava ajuda, porque sabia que não era um remédio que me daria a cura, aliás eles não dão, ajudam por um tempo, mas tudo volta, ou piora, ou sei lá, nem quero saber. Tomava litros e litros de água à noite toda, pensando nos afazeres do dia seguinte. Minhas dores na coluna lombar aumentavam com o passar dos anos. Caíra da bicicleta aos dez anos, e a quarta vértebra lombar havia levemente se deslocado para a direita, mas meu pai não quis que eu fosse operado, nem que usassem gesso, porque seria muito sofrimento para alguém tão jovem. Minha mãe foi contrária e me obrigou a usar, com muita insistência e orações, um colete por baixo da roupa. Aquilo me custava. Dava-me tédio ver-me daquela forma: um protótipo de robô esguio, sorumbático e com dentes perfeitos. Aliviava-me com antidepressivos, que também têm ação sobre as dores que eu sentia. Tomava de dois a três por dia. Quase nenhuma solução. E à noite, os sonhos acordados eram inúmeros: fumaça, luzes, mulheres, dragões, sirenes, tons de azul, ocre, alaranjado. Ontem, fizeram exatos três anos que havia perdido meu pai. Isso não me causava insônia, mas um certo alívio, pois era uma preocupação a menos: câncer metastatizado. Recebi um telefonema de Tavares, quer comemorar o noivado e me convidou para ser seu padrinho. Tudo na vida é um clichê, você só não sabe quando deve usar ou não a frase ou ação repetida e esperada pelo outro. E no final, surpresa: todos morrem. Meu amigo casou-se num sábado, numa bela e moderna igreja. Muita elegância e dinheiro gastos. Rebeca estava linda, vestida em tom quase dourado. Sorria para todos, mesmo que artificialmente. Havia brigado na véspera com Alessandro. E ele mais que ninguém fingia lá na frente. Soube disso depois, embora acreditasse piamente em sua alegria estampada no rosto. O buffet luxuosíssimo, música bem selecionada, comida deliciosa e ótimos vinhos e champanhes. Até eu, que sou abstêmio, bebi um pouco. Estava tudo perfeito, como diria minha avô, que na ocasião esperava o show de um cantor brega na televisão. Jordânia me apertava e beliscava como se o nosso casamento estivesse também acontecendo, na verdade, o que ela queria dizer era que tudo aquilo não pôde ter nem um terço na nossa festa. Claro, como comparar a festa de um bem-sucedido defensor público com a de um proletário? Para melhor entendimento: larguei a faculdade de ciências atuariais e fui trabalhar com meu sogro numa empresa de plásticos. Fui seu subalterno, um peão, e agora gerenciava o negócio. As coisas têm que mudar. Dormi cedo naquela noite, enquanto o inferno se preparava um pouco mais quente para Alessandro. Ainda não sei por que me divorciei de Rebeca. Detesto perdas, adeuses, despedidas e tudo que leve alguém embora de nossa vida, aliás, da minha vida. Meus insucessos começaram muito cedo, antes mesmo de eu nascer, perdi meu irmão gêmeo no nascimento, num parto complicado. Sou o mais moço e trouxe alegria e frustração aos meus familiares ao mesmo tempo. Tentei toda a vida acreditar na alegria somente, mas vi que as coisas se inclinam para o lado podre da árvore. E meus galhos são solertes, porém sou oco. Escolhi estudar direito, por mero interesse financeiro e uma dose inflamável de culpa e ironia. Lia livros e assistia aos filmes ditos baseados em fatos reais e que rondam sobre uma polêmica ou crime que cause clamor público. Interessei-me mais pelos filmes em si, como arte, do que pelo que se dizia, ou se pregava nas sessões teatralizadas do tribunal. Compadecia-me das vítimas e sentia-me também seu algoz, na medida em que jogava dos dois lados, acusando e defendendo. Resolvi, no entanto, ser defensor. A miséria alheia é o melhor pagador. Mentir é fácil, difícil é ser entendido nesse mundo. Não sou um revoltado, nem um excêntrico, nem um pós-adolescente berrando por socorro, nem um pobre coitado, muito menos esse. Não existem pobres coitados, existem desordens e deuses pervertidos. Deixei de beber logo que Rebeca foi embora, aliás, tomei um porre assim que ela saiu com as malas, mas depois curei-me da ressaca e a vida seguiu. Viciei-me em minhas dores e minha insônia e em minhas leituras. E meus clientes aumentaram. Meu sucesso profissional era inacreditável e invejável, para não dizer cobiçado pelos meus colegas da lei. Todos temos inveja, mas no direito e na medicina, os cães rosnam e ladram mais alto. E toda ração é pouca para eles. Sei disso muito bem, meu pai era médico. Sou um transgressor, sei disso também, deveria tê-lo seguido. A tradição nobiliárquica dos esculápios. Mas eu era também um doutor, e até gostava de que assim me chamassem, me dava um ar de mais maduro e de intangível. Nossa, como sou um pulha. Era uma noite de terça-feira. Alessandro saíra cedo do fórum. Deu liberdade a mais um cretino, quer dizer, cliente, e encheu os bolsos de mais alguns dobrões. Fazia um frio, iria chover, mau presságio, pensei. Por que ele me chamou aqui, nessa espelunca? O bar era um antigo café, na época de nossos avós. O dono era um ex-comunista, que agora tendia ao budismo e ao anarquismo. Todo palhaço tem sua hora. As moscas iam e voltavam, e em meus pensamentos restava um anseio não sei de que. Bebi um refrigerante e olhei para o outro lado da rua. Alessandro vinha cansado, diria trôpego, com o nó da gravata frouxo, o terno sobre o ombro, erguido pelo indicador às costas, ar sereno e triste. Nunca entendi esse tom de azedume do meu afilhado. Desde a escola fora assim, azedo, risonho, mas de um riso triste, volta e meia dávamos gargalhadas, mas ele voltava a ser triste. Dinheiro não traz felicidade mesmo, disse a mim, quando ele entrou e acenou para mim e para o dono do bar. Sentou-se, murmurou um como vai você e espichou-se na cadeira de madeira, como se jogasse o corpo numa piscina de água morna, para aliviar as tensões. Mas você tem alguns milhares a mais no bolso ou na poupança, amigo, por que isso tudo, por que essa cara?, deixei as perguntas atrás dos dentes e tomei um pouco mais do refrigerante. Oferecei-lhe um pouco, desdenhou com a cabeça e chamou seu Felismino, o dono do bar. Pediu uma água tônica e uma cerveja sem álcool. Tirou uns comprimidos do bolso, dois, um todo azul, e um de tom vermelho com branco. Tomou com um pouco do meu refrigerante e suspirou olhando para o teto. ‘Olha, Tavares, serei breve. Não se preocupe com o que vamos falar aqui. Escolhi o lugar exato, e seu Felismino é quase surdo, e mesmo que ouvisse algo, ele fingiria.’ Disparou Alessandro. ‘Tudo bem, eu estou numa boa. Está com fome?’, falei meio ressabiado. ‘Não, veja bem, estou .. quer dizer... droga, como é difícil... logo para mim que uso palavras o dia todo, que ouço, que leio... bom, veja lá. Preciso de você mais que nunca, sei que pode parecer medíocre e mesquinho de minha parte, mas você me deve alguns favores. Isso não é uma cobrança, nem um acerto de contas, nem nada, mas preciso de você. Você terá que me ajudar, só existe você nesse momento, só você’, disse isso quase às lágrimas, olhei para Tavares, como se conhecesse seus intentos e seu mais sombrio pensamento. ‘Não tenho dúvidas e espero que também não tenha da estima que tenho por você e por sua família, e farei qualquer coisa para ajudá-lo, qualquer coisa.’, eu estava decidido, o mundo estava ruindo para mim. Alessandro enxugou a testa com o lenço e aproximou-se, tirando da pasta preta um envelope pardo lacrado. Entendi tudo antes de me falar. ‘Tavares, padrinho, eu...’, ele sorriu mostrando sua franqueza e fraqueza, ‘eu entendo que meus atos não impedem que o mundo melhore, nem irá aumentar a paz do universo, dos átomos, nem irei me sentir mais macho ou humano por isso. Isso tudo é tão depreciativo para mim! Pronto, calma, Alessandro. Aqui dentro tem a foto de uma pessoa que preciso que você mate, aliás, que preciso que você mande matar. Não tenha medo, sei o que faço, lido com isso há dez anos. A sordidez humana é minha maior cúmplice. Aprendi muito com os caras que tento salvar das labaredas maiores do inferno. Acredite, estou tranqüilo, e o que me levou a isso foi um momento de lucidez sem igual, não me pergunte os porquês, nem como cheguei a essa conclusão agora, hoje, no dia em que faço bodas de alguma coisa, do casamento que nunca tive. Rebeca está feliz, terá um filho em breve, falei com ela nesse fim de semana, e ela me ajudou na minha decisão.’ ‘Você falou com ela? Como ela está? Quer dizer.. Com quem?’ ‘O pai é um primo dela. Ela não casou de novo, mas resolveu ser mãe, encontrou-se finalmente, disse-me ela’. ‘Que bom, espero que tenha tomado juízo.’ ‘Ninguém tem juízo nesta vida, o que temos são impulsos, são tensões, forças que nos empurram. O juízo vem depois. Mas deixemos esse papo, estamos fugindo do assunto. Olhe, não precisa se preocupar com a pessoa que irá contratar, eu já sei quem será. Você apenas terá o trabalho de ir ao seu encontro, entregar-lhe isso e isto.’ Retirou um outro envelope menor e me entregou os dois. ‘Aqui tem o que ele precisa. Esqueça o resto e deixe tudo com ele. O endereço e o telefone dele está aqui’. Retirou um pedaço de papel do bolso do terno, que estava sobre suas pernas. ‘Nada mais quero falar sobre isso, espero que me entenda e me ajude.’ Toquei a mão de Tavares com pena de sua cara de infeliz e de assustado, diria que estava patético, mas isso estragaria tudo. Saí do bar sem olhar para os lados, apenas olhava para o envelope maior na minha mão.Começou a chover. Ciências atuariais? Deveria ser meteorologista ou cartomante, tudo dá no mesmo. Todos enrolam a gente. Cheguei em casa, não falei direito com Jordânia e fui direto para o quarto. Tomei banho e revi toda a cena debaixo do chuveiro. Você tem que me ajudar. Alessandro estava apreensivo, mas envolvido de uma convicção antes não vista. Dormi após muito custo naquela noite. Não jantei, nem escovei os dentes. Levantei e fui para a empresa. Meu sogro havia viajado e tudo estava sob meu controle. No almoço, liguei para meu cunhado e pedi que ele viesse me cobrir, enquanto eu estava fora. Peão precisa ser supervisionado, onde quer que seja, e eu estava prestes a assumir o controle total da empresa, era preciso ficar de olho e tomar cuidado. Mas meu amigo precisava de mim. Sim, ele me ajudou muito. Após seu descasamento, ele me ajudou financeira e judicialmente. Limpou meu nome da folha policial. Minha adolescência não foi tão de ouro assim. Ajudou com o tratamento de meu filho, que nasceu com múltiplas malformações, e sobreviveu graças aos médicos e ao dinheiro do padrinho, Alessandro. Eu precisava recompensá-lo e aquele era o momento. Não existia não em minha cabeça, nem parei o carro no sinal vermelho naquela tarde. Não sou um homem de virtudes. Nunca fui, nem quis ser. Matei minha primeira vítima, como se diz na linguagem jurídica, aos dezessete anos, após uma bebedeira da escola, e quem levou a culpa foi meu pai. Entre idas e vindas de reformatórios e casas de ajuda aos adolescentes infratores e filhinhos-de-papai-que-só-querem-encher-a-cara-e-curtir-com-a-dos-outros, eu fui me tornando mais detestável e passei da ojeriza à intolerância rapidamente. Cheirei pó, fumei baseado, me piquei, participei de festinhas em que a promiscuidade é a vilã a nos esperar no final da fila. Transei com amigas, com namoradas de amigos, com ex-namoradas de amigos, com vizinhas, com recém-separadas, com viúvas, com empregadas de meus amigos, com as tias de meus amigos, e me apaixonei uma única vez pela mãe de um, mas deixa isso para lá. Matei mais dois e fui mandado para o xilindró. Não tive regalia, nunca fui de estudar. Pelo menos, para isso me serviria o tal do diploma, papai estava certo, que o diabo o tenha e nossa senhora lhe dê um fora daqueles. Fiz amizades lá dentro, até que um desses doutorzinhos recém-saído das cadeiras da universidade me apareceu. Não pus fé nele, mas logo ficamos íntimos, ou melhor, ele ficou íntimo, quer dizer, eu contei todos os meus podres, menos a minha paixão secreta por uma mulher mais velha. A pena foi reduzida. Me comportei bem e tal, me saí daquela. Mamãe e os titios pagaram. Gente boa é quem tem grana. Fui para Miami, abri uma loja de muambas para brasileiro fresquinho ir comprar, mas quebrei em menos de cinco meses. Tomei tudo que ganhei. Uísques, putas americanas, canadenses, chinesas, teve até uma queniana, pensei que essas somente corressem, elas trepam também. Voltei ao pó, ao pico e a tudo que for droga do mundo. Provei de tudo. Fui extraditado, apareci nos jornais, sou maravilhoso, terrível e tenho apenas o segundo grau. Minha família é de ouro, sou eu que não presto. O doutorzinho, já de barba, me ajudou de novo. Ele sabia de mim e do que eu precisava. Limpou minha barra ou quase. Conseguiu pena mínima numa penitenciária agrícola para psicopatas. Ri demais quando vi os doidinhos lá, e eu zoando com tudo aquilo, e tome pico de novo, agora era legal, os doutores, a lei e as enfermeiras aprovavam. Fiquei doidão e me soltaram após uns meses. O dinheiro é tudo nessa vida. Molha a mão ali, compra um não sei que acolá, tudo se resolve, pra tudo há um jeito, só não para a morte. Matei mais um, um velho desafeto, da época de minha primeira prisão. Ele bobeou na saída de uma festa. Ambos alcoolizados. Mas eu fui mais rápido no gatilho. Levei a melhor, o cara era odiado pela polícia, pelos advogados, pela família. Um a menos. São Pedro, não precisa agradecer. Estamos aí. E me apareceram outros: sou um homicida com requinte, sou filho de rico, viajei o mundo e meto bala quando é necessário. Não preciso de minha família. Mato mesmo. E naquela tarde, o moço de olho verde apareceu, parecia artista de cinema, um galã da televisão. ‘Zito? É você o Zito?’, tinha tremor na voz do cara, um pai de família honesto. ‘Pode ser, que é que há? Como soube de mim?’, eu cheirava uma carreira fininha, a primeira da tarde, quando ele entrou. ‘Alguém me mandou aqui. Um amigo.’ ‘Amigo? Quem?’ ‘O doutor Alessandro’. Suei frio naquela hora. A coca me ajudou com o coração. Quase enfartei, mas sou forte, sei me domar. Aprendi a ser bicho. ‘OK, o que o doutorzinho manda?’ ‘Posso sentar? É o seguinte...’ Virei a esquina meio tonto, como se estivesse prestes a ser sugado pela terra ou levado por qualquer água de bueiro. Voltei para empresa e passei a tarde bocejando e tomando café. Em casa, não conversei com Jordânia, nem mesmo fui ver o jogo de futebol, nem perguntei pelo Flavinho, meu filho. Ela insistiu que transássemos, e com o desejo de fugir daquela tensão toda, eu me afoguei em seus braços. Fizemos amor até as duas da manhã. Acordei com dor de cabeça. O telefone tocou às sete e quinze. Hora de ir à escola, lembrei. Jordânia coçou minhas costas, e o quarto todo se fechou sobre mim. Era pro doutorzinho, tinha que fazer, nem que fosse pra matar o presidente, mas esse eu mesmo mato quando eu quiser. Eu não sabia como iria começar, mas meu lado bicho falou, urrou mais alto. Desci as escadas do meu duplex e segui morro abaixo, olhando a cerração sobre a cidade. O predestinado estava lá, à minha espera, em frente ao campinho de futebol. Parecia um menino. Encostei o carro perto da trave e atravessei o campo, contando os passos, sempre faço isso, quando o meu nervosismo quer me mudar o destino. Coragem está nos bagos e na ponta dos pés. A arma ajuda. Não olhei para ele, apenas vi o colarinho da camisa, roupa de grife. Bum. Ele caiu sob meus pés. Havia lama e sangue ali. Não sei por quê, comecei a chorar. Chorei como um cachorro que leva um chute no meio da barriga magra. Chorei baixinho, me contendo e dei outro tiro sobre as costas dele. Corri para o carro. Uivei e sumi na chuva que começara a inundar a cidade e a espalhar seus dejetos. Está tudo resolvido. Amanhã é o dia. Será um dia qualquer. Lembrei de Fernando Pessoa. Lembrarão de você em duas datas: data do nascimento, data da morte. Não foi assim que ele escreveu, mas nesse sentido, e então voltei ao livro, que estava na estante. Olhei para ela como para um quadro de pintura. E li: “Se te queres matar, porque não te queres matar? (...) Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. Mais nada, absolutamente, mais nada (...) Encara-te a frio, e encara a frio o que somos. Se queres matar-te, mata-te (...) Pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo... Fechei o livro, voltei aos cálculos das possíveis dívidas que teria até que chegasse o fim do ano, separei todas as roupas, que seriam então doadas a instituições de caridade, coloquei meu testamento sobre a mesa de cabeceira, revi trechos de minha nobre vida de jovem. Um sonhador fui. Um amante. Um marido. Um filho. Um namorado. Um amigo. Um ator. Uma sombra. Um aconchego. Um sorriso. Uma cara carrancuda. Um patricida homicida fatricida suicida viciado em mim mesmo. Por isso mesmo esgotei-me. Embriaguei-me de mim. Segui para o lugar marcado. Ele chegou na hora exata. Vinha como se contasse os passos, aliás, ele contava, disse-me isso uma vez, fazia sempre quando estava nervoso. Parecia um menino, depois um macaco, depois um lacaio de filme de deserto, depois um vilão de faroestes, depois nomes e nomes, faces e faces, sentenças e crimes, sonhos e pesadelos, depois ele mesmo, com os cabelos cacheados e tudo, até o molejo no andar. Encostou o cano da arma na cabeça. Eu estava quente, mas viria chuva logo a seguir, minha camisa estava ensopada de suor e orvalho. Atirou. Bum. Caí sob seus pés. Não vi mais nada, apenas deu tempo estender a mão para o lado. Ouvi outro estampido, parecia filme, eu era um dublê. E a dor da coluna até que passou. Não fui preso, porque segui tudo o que ele me disse. Esperei alguns meses. Passou o natal, a páscoa e nas férias de Flavinho, em julho, partimos para França. Nunca falei francês, mas achei tudo aquilo cintilante e quase me embeveci com o que acontecera. Tive pena de mim, estava tresloucado. O dinheiro é a miséria que finge. É a antecipação da tragédia. Abri um resort , e ao contrário do que pensariam os fatalistas, me dei bem na vida e leio muito sobre turismo, hotelaria, hospedagem, smiles. Jordânia me ajuda a tocar o negócio. Aprendeu a língua facilmente. Flavinho é nosso mais novo empregado e excelente chef. É preciso que eu volte tudo para reaver meu equívoco? Não há erro, tudo é questão de interpretação, aprendi com Alessandro. Dancei muito na Martinica, em Bora-Bora, conheço todos os pubs e cafés londrinos, berlinenses, parisienses. Conheci Josephine numa danceteria, onde rolava de tudo. Casamos, juntamos nossos trapos. Ela não sabe de nada do meu passado, nem precisa. O espelho serve para isso, para nos esconder de nós mesmos. Entre um delírio e outro, lembro sempre do doutorzinho. Caído, molhado pela chuva e pela lama. Maldito seja, infame, covarde. De alguma forma, entendi suas razões. Resolvemos passar férias na Riviera Francesa. Disse minha mulher, puxa nunca pensei em dizer isso: minha mulher, ela disse que tem um resort lindo e quem toca é um brasileiro. Parece bacana para se passar uma lua-de-mel. |