11.1.06

o contrato - conto

O CONTRATO

Conheci Alessandro no jardim da infância. No primeiro dia em que nos vimos, percebemos que tínhamos afinidade, e logo, nós nos tornaríamos amigos. Conversávamos muito e éramos os primeiros da classe. Acredito que o fato de sermos inteligentes, fazia com que detestássemos as explicações repetitivas dadas para os outros colegas. E a professora sempre, ou melhor, a tia nos separava, mas não adiantava. Fazíamos bilhetes, usávamos mímica. Reunião de pais e mestres a mesma coisa: ‘são os melhores’, diziam aos nossos pais, ‘mas precisam conversar menos.’ Sempre achei a educação como instituição do saber uma forma de coerção, e não foi por isso que deixei a faculdade pela metade. Foram vários motivos. Não vou discorrer sobre eles. Não valem a pena. Preciso, no entanto, relatar que após terminarmos o ginásio, nós, Alessandro e eu, nos distanciamos, embora morássemos perto um do outro. Escolas diferentes, amigos e colegas diferentes, novas diabruras, namoradas, paixões, quedas e outras asneiras como preâmbulo da vida adulta. E lá estávamos mais uma vez a nos encontrar, no pátio da igreja, em que eu me casaria com Jordânia. Ele acompanhava a mãe a uma missa de sétimo de dia de um parente distante. Alessandro apenas freqüentava a igreja nessas ocasiões, quando não havia escapatória: resquício de uma adolescência mal-construída ou fadada ao ceticismo. Cumprimentamo-nos, forte abraço, mesma amizade, renovada, adulta. Usava um terno elegante escuro e usava óculos redondos. Olhos atentos a tudo, voz solene, mãos delicadas e gentis. Sua mãe, a mesma candura de sempre. E o padre entoava cânticos e leituras, enquanto nós conversávamos. Tínhamos muito que pôr em dia.


Desci do carro, angustiado como sempre, sabendo que nada seria diferente no elevador, ao olhar-me no espelho do corredor do meu andar, ou tentar dormir em frente à televisão. Leituras acadêmicas, filmes antigos, revistas de economia, poesia e prosa, nada adiantava. Já não dormia bem há alguns anos. Sabia disso e não procurava ajuda, porque sabia que não era um remédio que me daria a cura, aliás eles não dão, ajudam por um tempo, mas tudo volta, ou piora, ou sei lá, nem quero saber. Tomava litros e litros de água à noite toda, pensando nos afazeres do dia seguinte. Minhas dores na coluna lombar aumentavam com o passar dos anos. Caíra da bicicleta aos dez anos, e a quarta vértebra lombar havia levemente se deslocado para a direita, mas meu pai não quis que eu fosse operado, nem que usassem gesso, porque seria muito sofrimento para alguém tão jovem. Minha mãe foi contrária e me obrigou a usar, com muita insistência e orações, um colete por baixo da roupa. Aquilo me custava. Dava-me tédio ver-me daquela forma: um protótipo de robô esguio, sorumbático e com dentes perfeitos. Aliviava-me com antidepressivos, que também têm ação sobre as dores que eu sentia. Tomava de dois a três por dia. Quase nenhuma solução. E à noite, os sonhos acordados eram inúmeros: fumaça, luzes, mulheres, dragões, sirenes, tons de azul, ocre, alaranjado. Ontem, fizeram exatos três anos que havia perdido meu pai. Isso não me causava insônia, mas um certo alívio, pois era uma preocupação a menos: câncer metastatizado. Recebi um telefonema de Tavares, quer comemorar o noivado e me convidou para ser seu padrinho. Tudo na vida é um clichê, você só não sabe quando deve usar ou não a frase ou ação repetida e esperada pelo outro. E no final, surpresa: todos morrem.

Meu amigo casou-se num sábado, numa bela e moderna igreja. Muita elegância e dinheiro gastos. Rebeca estava linda, vestida em tom quase dourado. Sorria para todos, mesmo que artificialmente. Havia brigado na véspera com Alessandro. E ele mais que ninguém fingia lá na frente. Soube disso depois, embora acreditasse piamente em sua alegria estampada no rosto. O buffet luxuosíssimo, música bem selecionada, comida deliciosa e ótimos vinhos e champanhes. Até eu, que sou abstêmio, bebi um pouco. Estava tudo perfeito, como diria minha avô, que na ocasião esperava o show de um cantor brega na televisão. Jordânia me apertava e beliscava como se o nosso casamento estivesse também acontecendo, na verdade, o que ela queria dizer era que tudo aquilo não pôde ter nem um terço na nossa festa. Claro, como comparar a festa de um bem-sucedido defensor público com a de um proletário? Para melhor entendimento: larguei a faculdade de ciências atuariais e fui trabalhar com meu sogro numa empresa de plásticos. Fui seu subalterno, um peão, e agora gerenciava o negócio. As coisas têm que mudar. Dormi cedo naquela noite, enquanto o inferno se preparava um pouco mais quente para Alessandro.

Ainda não sei por que me divorciei de Rebeca. Detesto perdas, adeuses, despedidas e tudo que leve alguém embora de nossa vida, aliás, da minha vida. Meus insucessos começaram muito cedo, antes mesmo de eu nascer, perdi meu irmão gêmeo no nascimento, num parto complicado. Sou o mais moço e trouxe alegria e frustração aos meus familiares ao mesmo tempo. Tentei toda a vida acreditar na alegria somente, mas vi que as coisas se inclinam para o lado podre da árvore. E meus galhos são solertes, porém sou oco. Escolhi estudar direito, por mero interesse financeiro e uma dose inflamável de culpa e ironia. Lia livros e assistia aos filmes ditos baseados em fatos reais e que rondam sobre uma polêmica ou crime que cause clamor público. Interessei-me mais pelos filmes em si, como arte, do que pelo que se dizia, ou se pregava nas sessões teatralizadas do tribunal. Compadecia-me das vítimas e sentia-me também seu algoz, na medida em que jogava dos dois lados, acusando e defendendo. Resolvi, no entanto, ser defensor. A miséria alheia é o melhor pagador. Mentir é fácil, difícil é ser entendido nesse mundo. Não sou um revoltado, nem um excêntrico, nem um pós-adolescente berrando por socorro, nem um pobre coitado, muito menos esse. Não existem pobres coitados, existem desordens e deuses pervertidos. Deixei de beber logo que Rebeca foi embora, aliás, tomei um porre assim que ela saiu com as malas, mas depois curei-me da ressaca e a vida seguiu. Viciei-me em minhas dores e minha insônia e em minhas leituras. E meus clientes aumentaram. Meu sucesso profissional era inacreditável e invejável, para não dizer cobiçado pelos meus colegas da lei. Todos temos inveja, mas no direito e na medicina, os cães rosnam e ladram mais alto. E toda ração é pouca para eles. Sei disso muito bem, meu pai era médico. Sou um transgressor, sei disso também, deveria tê-lo seguido. A tradição nobiliárquica dos esculápios. Mas eu era também um doutor, e até gostava de que assim me chamassem, me dava um ar de mais maduro e de intangível. Nossa, como sou um pulha.

Era uma noite de terça-feira. Alessandro saíra cedo do fórum. Deu liberdade a mais um cretino, quer dizer, cliente, e encheu os bolsos de mais alguns dobrões. Fazia um frio, iria chover, mau presságio, pensei. Por que ele me chamou aqui, nessa espelunca? O bar era um antigo café, na época de nossos avós. O dono era um ex-comunista, que agora tendia ao budismo e ao anarquismo. Todo palhaço tem sua hora. As moscas iam e voltavam, e em meus pensamentos restava um anseio não sei de que. Bebi um refrigerante e olhei para o outro lado da rua. Alessandro vinha cansado, diria trôpego, com o nó da gravata frouxo, o terno sobre o ombro, erguido pelo indicador às costas, ar sereno e triste. Nunca entendi esse tom de azedume do meu afilhado. Desde a escola fora assim, azedo, risonho, mas de um riso triste, volta e meia dávamos gargalhadas, mas ele voltava a ser triste. Dinheiro não traz felicidade mesmo, disse a mim, quando ele entrou e acenou para mim e para o dono do bar. Sentou-se, murmurou um como vai você e espichou-se na cadeira de madeira, como se jogasse o corpo numa piscina de água morna, para aliviar as tensões. Mas você tem alguns milhares a mais no bolso ou na poupança, amigo, por que isso tudo, por que essa cara?, deixei as perguntas atrás dos dentes e tomei um pouco mais do refrigerante. Oferecei-lhe um pouco, desdenhou com a cabeça e chamou seu Felismino, o dono do bar. Pediu uma água tônica e uma cerveja sem álcool. Tirou uns comprimidos do bolso, dois, um todo azul, e um de tom vermelho com branco. Tomou com um pouco do meu refrigerante e suspirou olhando para o teto.

‘Olha, Tavares, serei breve. Não se preocupe com o que vamos falar aqui. Escolhi o lugar exato, e seu Felismino é quase surdo, e mesmo que ouvisse algo, ele fingiria.’ Disparou Alessandro.
‘Tudo bem, eu estou numa boa. Está com fome?’, falei meio ressabiado.
‘Não, veja bem, estou .. quer dizer... droga, como é difícil... logo para mim que uso palavras o dia todo, que ouço, que leio... bom, veja lá. Preciso de você mais que nunca, sei que pode parecer medíocre e mesquinho de minha parte, mas você me deve alguns favores. Isso não é uma cobrança, nem um acerto de contas, nem nada, mas preciso de você. Você terá que me ajudar, só existe você nesse momento, só você’, disse isso quase às lágrimas, olhei para Tavares, como se conhecesse seus intentos e seu mais sombrio pensamento.
‘Não tenho dúvidas e espero que também não tenha da estima que tenho por você e por sua família, e farei qualquer coisa para ajudá-lo, qualquer coisa.’, eu estava decidido, o mundo estava ruindo para mim. Alessandro enxugou a testa com o lenço e aproximou-se, tirando da pasta preta um envelope pardo lacrado. Entendi tudo antes de me falar.
‘Tavares, padrinho, eu...’, ele sorriu mostrando sua franqueza e fraqueza, ‘eu entendo que meus atos não impedem que o mundo melhore, nem irá aumentar a paz do universo, dos átomos, nem irei me sentir mais macho ou humano por isso. Isso tudo é tão depreciativo para mim! Pronto, calma, Alessandro. Aqui dentro tem a foto de uma pessoa que preciso que você mate, aliás, que preciso que você mande matar. Não tenha medo, sei o que faço, lido com isso há dez anos. A sordidez humana é minha maior cúmplice. Aprendi muito com os caras que tento salvar das labaredas maiores do inferno. Acredite, estou tranqüilo, e o que me levou a isso foi um momento de lucidez sem igual, não me pergunte os porquês, nem como cheguei a essa conclusão agora, hoje, no dia em que faço bodas de alguma coisa, do casamento que nunca tive. Rebeca está feliz, terá um filho em breve, falei com ela nesse fim de semana, e ela me ajudou na minha decisão.’
‘Você falou com ela? Como ela está? Quer dizer.. Com quem?’
‘O pai é um primo dela. Ela não casou de novo, mas resolveu ser mãe, encontrou-se finalmente, disse-me ela’.
‘Que bom, espero que tenha tomado juízo.’
‘Ninguém tem juízo nesta vida, o que temos são impulsos, são tensões, forças que nos empurram. O juízo vem depois. Mas deixemos esse papo, estamos fugindo do assunto. Olhe, não precisa se preocupar com a pessoa que irá contratar, eu já sei quem será. Você apenas terá o trabalho de ir ao seu encontro, entregar-lhe isso e isto.’ Retirou um outro envelope menor e me entregou os dois. ‘Aqui tem o que ele precisa. Esqueça o resto e deixe tudo com ele. O endereço e o telefone dele está aqui’. Retirou um pedaço de papel do bolso do terno, que estava sobre suas pernas. ‘Nada mais quero falar sobre isso, espero que me entenda e me ajude.’ Toquei a mão de Tavares com pena de sua cara de infeliz e de assustado, diria que estava patético, mas isso estragaria tudo.

Saí do bar sem olhar para os lados, apenas olhava para o envelope maior na minha mão.Começou a chover. Ciências atuariais? Deveria ser meteorologista ou cartomante, tudo dá no mesmo. Todos enrolam a gente. Cheguei em casa, não falei direito com Jordânia e fui direto para o quarto. Tomei banho e revi toda a cena debaixo do chuveiro. Você tem que me ajudar. Alessandro estava apreensivo, mas envolvido de uma convicção antes não vista. Dormi após muito custo naquela noite. Não jantei, nem escovei os dentes. Levantei e fui para a empresa. Meu sogro havia viajado e tudo estava sob meu controle. No almoço, liguei para meu cunhado e pedi que ele viesse me cobrir, enquanto eu estava fora. Peão precisa ser supervisionado, onde quer que seja, e eu estava prestes a assumir o controle total da empresa, era preciso ficar de olho e tomar cuidado. Mas meu amigo precisava de mim. Sim, ele me ajudou muito. Após seu descasamento, ele me ajudou financeira e judicialmente. Limpou meu nome da folha policial. Minha adolescência não foi tão de ouro assim. Ajudou com o tratamento de meu filho, que nasceu com múltiplas malformações, e sobreviveu graças aos médicos e ao dinheiro do padrinho, Alessandro. Eu precisava recompensá-lo e aquele era o momento. Não existia não em minha cabeça, nem parei o carro no sinal vermelho naquela tarde.

Não sou um homem de virtudes. Nunca fui, nem quis ser. Matei minha primeira vítima, como se diz na linguagem jurídica, aos dezessete anos, após uma bebedeira da escola, e quem levou a culpa foi meu pai. Entre idas e vindas de reformatórios e casas de ajuda aos adolescentes infratores e filhinhos-de-papai-que-só-querem-encher-a-cara-e-curtir-com-a-dos-outros, eu fui me tornando mais detestável e passei da ojeriza à intolerância rapidamente. Cheirei pó, fumei baseado, me piquei, participei de festinhas em que a promiscuidade é a vilã a nos esperar no final da fila. Transei com amigas, com namoradas de amigos, com ex-namoradas de amigos, com vizinhas, com recém-separadas, com viúvas, com empregadas de meus amigos, com as tias de meus amigos, e me apaixonei uma única vez pela mãe de um, mas deixa isso para lá. Matei mais dois e fui mandado para o xilindró. Não tive regalia, nunca fui de estudar. Pelo menos, para isso me serviria o tal do diploma, papai estava certo, que o diabo o tenha e nossa senhora lhe dê um fora daqueles. Fiz amizades lá dentro, até que um desses doutorzinhos recém-saído das cadeiras da universidade me apareceu. Não pus fé nele, mas logo ficamos íntimos, ou melhor, ele ficou íntimo, quer dizer, eu contei todos os meus podres, menos a minha paixão secreta por uma mulher mais velha. A pena foi reduzida. Me comportei bem e tal, me saí daquela. Mamãe e os titios pagaram. Gente boa é quem tem grana. Fui para Miami, abri uma loja de muambas para brasileiro fresquinho ir comprar, mas quebrei em menos de cinco meses. Tomei tudo que ganhei. Uísques, putas americanas, canadenses, chinesas, teve até uma queniana, pensei que essas somente corressem, elas trepam também. Voltei ao pó, ao pico e a tudo que for droga do mundo. Provei de tudo. Fui extraditado, apareci nos jornais, sou maravilhoso, terrível e tenho apenas o segundo grau. Minha família é de ouro, sou eu que não presto. O doutorzinho, já de barba, me ajudou de novo. Ele sabia de mim e do que eu precisava. Limpou minha barra ou quase. Conseguiu pena mínima numa penitenciária agrícola para psicopatas. Ri demais quando vi os doidinhos lá, e eu zoando com tudo aquilo, e tome pico de novo, agora era legal, os doutores, a lei e as enfermeiras aprovavam. Fiquei doidão e me soltaram após uns meses. O dinheiro é tudo nessa vida. Molha a mão ali, compra um não sei que acolá, tudo se resolve, pra tudo há um jeito, só não para a morte. Matei mais um, um velho desafeto, da época de minha primeira prisão. Ele bobeou na saída de uma festa. Ambos alcoolizados. Mas eu fui mais rápido no gatilho. Levei a melhor, o cara era odiado pela polícia, pelos advogados, pela família. Um a menos. São Pedro, não precisa agradecer. Estamos aí. E me apareceram outros: sou um homicida com requinte, sou filho de rico, viajei o mundo e meto bala quando é necessário. Não preciso de minha família. Mato mesmo. E naquela tarde, o moço de olho verde apareceu, parecia artista de cinema, um galã da televisão.

‘Zito? É você o Zito?’, tinha tremor na voz do cara, um pai de família honesto.
‘Pode ser, que é que há? Como soube de mim?’, eu cheirava uma carreira fininha, a primeira da tarde, quando ele entrou.
‘Alguém me mandou aqui. Um amigo.’
‘Amigo? Quem?’
‘O doutor Alessandro’. Suei frio naquela hora. A coca me ajudou com o coração. Quase enfartei, mas sou forte, sei me domar. Aprendi a ser bicho.
‘OK, o que o doutorzinho manda?’
‘Posso sentar? É o seguinte...’

Virei a esquina meio tonto, como se estivesse prestes a ser sugado pela terra ou levado por qualquer água de bueiro. Voltei para empresa e passei a tarde bocejando e tomando café. Em casa, não conversei com Jordânia, nem mesmo fui ver o jogo de futebol, nem perguntei pelo Flavinho, meu filho. Ela insistiu que transássemos, e com o desejo de fugir daquela tensão toda, eu me afoguei em seus braços. Fizemos amor até as duas da manhã. Acordei com dor de cabeça. O telefone tocou às sete e quinze. Hora de ir à escola, lembrei. Jordânia coçou minhas costas, e o quarto todo se fechou sobre mim.

Era pro doutorzinho, tinha que fazer, nem que fosse pra matar o presidente, mas esse eu mesmo mato quando eu quiser. Eu não sabia como iria começar, mas meu lado bicho falou, urrou mais alto. Desci as escadas do meu duplex e segui morro abaixo, olhando a cerração sobre a cidade. O predestinado estava lá, à minha espera, em frente ao campinho de futebol. Parecia um menino. Encostei o carro perto da trave e atravessei o campo, contando os passos, sempre faço isso, quando o meu nervosismo quer me mudar o destino. Coragem está nos bagos e na ponta dos pés. A arma ajuda. Não olhei para ele, apenas vi o colarinho da camisa, roupa de grife. Bum. Ele caiu sob meus pés. Havia lama e sangue ali. Não sei por quê, comecei a chorar. Chorei como um cachorro que leva um chute no meio da barriga magra. Chorei baixinho, me contendo e dei outro tiro sobre as costas dele. Corri para o carro. Uivei e sumi na chuva que começara a inundar a cidade e a espalhar seus dejetos.

Está tudo resolvido. Amanhã é o dia. Será um dia qualquer. Lembrei de Fernando Pessoa. Lembrarão de você em duas datas: data do nascimento, data da morte. Não foi assim que ele escreveu, mas nesse sentido, e então voltei ao livro, que estava na estante. Olhei para ela como para um quadro de pintura. E li: “Se te queres matar, porque não te queres matar? (...) Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. Mais nada, absolutamente, mais nada (...) Encara-te a frio, e encara a frio o que somos. Se queres matar-te, mata-te (...) Pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo... Fechei o livro, voltei aos cálculos das possíveis dívidas que teria até que chegasse o fim do ano, separei todas as roupas, que seriam então doadas a instituições de caridade, coloquei meu testamento sobre a mesa de cabeceira, revi trechos de minha nobre vida de jovem. Um sonhador fui. Um amante. Um marido. Um filho. Um namorado. Um amigo. Um ator. Uma sombra. Um aconchego. Um sorriso. Uma cara carrancuda. Um patricida homicida fatricida suicida viciado em mim mesmo. Por isso mesmo esgotei-me. Embriaguei-me de mim. Segui para o lugar marcado. Ele chegou na hora exata. Vinha como se contasse os passos, aliás, ele contava, disse-me isso uma vez, fazia sempre quando estava nervoso. Parecia um menino, depois um macaco, depois um lacaio de filme de deserto, depois um vilão de faroestes, depois nomes e nomes, faces e faces, sentenças e crimes, sonhos e pesadelos, depois ele mesmo, com os cabelos cacheados e tudo, até o molejo no andar. Encostou o cano da arma na cabeça. Eu estava quente, mas viria chuva logo a seguir, minha camisa estava ensopada de suor e orvalho. Atirou. Bum. Caí sob seus pés. Não vi mais nada, apenas deu tempo estender a mão para o lado. Ouvi outro estampido, parecia filme, eu era um dublê. E a dor da coluna até que passou.

Não fui preso, porque segui tudo o que ele me disse. Esperei alguns meses. Passou o natal, a páscoa e nas férias de Flavinho, em julho, partimos para França. Nunca falei francês, mas achei tudo aquilo cintilante e quase me embeveci com o que acontecera. Tive pena de mim, estava tresloucado. O dinheiro é a miséria que finge. É a antecipação da tragédia. Abri um resort , e ao contrário do que pensariam os fatalistas, me dei bem na vida e leio muito sobre turismo, hotelaria, hospedagem, smiles. Jordânia me ajuda a tocar o negócio. Aprendeu a língua facilmente. Flavinho é nosso mais novo empregado e excelente chef.

É preciso que eu volte tudo para reaver meu equívoco? Não há erro, tudo é questão de interpretação, aprendi com Alessandro. Dancei muito na Martinica, em Bora-Bora, conheço todos os pubs e cafés londrinos, berlinenses, parisienses. Conheci Josephine numa danceteria, onde rolava de tudo. Casamos, juntamos nossos trapos. Ela não sabe de nada do meu passado, nem precisa. O espelho serve para isso, para nos esconder de nós mesmos. Entre um delírio e outro, lembro sempre do doutorzinho. Caído, molhado pela chuva e pela lama. Maldito seja, infame, covarde. De alguma forma, entendi suas razões. Resolvemos passar férias na Riviera Francesa. Disse minha mulher, puxa nunca pensei em dizer isso: minha mulher, ela disse que tem um resort lindo e quem toca é um brasileiro. Parece bacana para se passar uma lua-de-mel.


4.1.06

poesia

>>
Alguém lá fora dorme meu sono,
Ama minha mulher e aproveita meu tempo.
Alguém restitui a falha que ajunta
E me diz que ainda é noite,
Quando tarde para tudo.
Alguém me ama lá fora
E me dá a lua: a última coisa que me resta.
Alguém tenta me ser alguém lá fora,
E agora, já que é hora, vou partindo
Esse alguém para que eu não parta
E me acabe a lua, o tempo e o resto.

>>
vou parar por um tempo
escrever não adianta
nem adianta o tempo
que porventura não pára
alucinação deserta vivida
estou saturado de objeção
e preço incalculável de loucura
é preciso amadurecer
por isso não se pode escrever
nesse enquanto
e no outro vamos dançar
fazer música
pintar
rememorar os velhos momentos
esquecidos e vendidos no mercado
o sabor do tédio é melhor com esquecimento
e sons já vencidos e um vinho safra qualquer
já não posso clamar à deusa
aos seres abstratos
ao tal do idealismo
ou outros ismos que me respondam
em notas reverberadas de palavras
só saem amontoados de asneiras
pior que as que julgo dos outros
é preciso estancar o sangue
e surrar qualquer idéia
pintando-a de nova
numa nova valsa
mas sem ninfas
sem marés que nos acolha
como?
Como hei de?
Como? Ei, é preciso dar um tempo...
Mesmo que o Tempo seja o cajado
Que nos dê a pancada da vida.

POESIA EM DÓ MAIOR

O que faço de ti?
Ponho-a em algum dos bolsos
E derreto-a em vinho.
Quebro-a em vinte mil pedaços
E empurro-a num saco de vidro,
Arrebatando-a, brandindo-a como hino.
Como-a sem molho, mesmo sem fome,
Escolho-a entre as damas para dançar
E vago no deserto de sua fúria
gélida e risonha.
Meto-a num veículo em movimento
E fujo para a lua, onde ela espera,
E morro na tentativa de tentar.
Desço-a pelas escadas e ela me derruba,
E levo-a pelas esquinas,
Alegrando-a com as vitrines.
Musa de gelo, menina,
Criança, circense,
Doente, donzela,
Maldita, sozinha,
Pantera, olho nu,
Máscara.
Que faço de ti, tristeza?
Desfaço?
Faço?
Refaço?
Já não disfarço
E tu não somes
A me consumir,
Imunda, abjeta, vil.
Há horizontes mais belos que este
E tu não vês comigo o que vejo.
Há noites mais frias que esta
E tu me segues sorrindo.
Há dias, há dias, outros dias,
E tu segues, passo a passo,
Ditando os versos de tua ampla falta de poesia.

CALAR

Calar, coração, calar, essa é a mensagem da missiva que te enviam,
Essa é a sorte que te gritam.
Calar um coração que se abate com um levíssimo sopro de vento,
E os dentes antipáticos da vileza do mundo o fazem taciturno
e perdido, no alheamento em que descobre que nada há a descobrir.
Calar o coração que jaz de pedra e reluz ouro pintado nas
diuturnas sinfonias inacabadas,
Represando em obsessões apaixonadas.
O zum-zum-zum do espaço traga-o
E um realejo cantarola seus finos passos,
seu doce réquiem de lembranças.
Cobrar do coração a astúcia mambembe das feras,
Partindo sem deixar rastro até o sepultamento.
A astúcia inerte, a astúcia, coração,
A astúcia que em vão te assusta.
Centrar no coração os ditames e as lamúrias do outro
E fazer-lhe ouvinte para adoecer menos pelo desencanto,
E encantar-se mesmo por isso,
Parecendo dono de alguma coisa menos esquisita.
Calar, coração! O que te pedem é fácil: é calar, apenas.
Calar tua boca e apunhalar teu ventre, esconder a tua sombra.
Cala, coração, e saiba que todas as batidas
estrondam num céu que não conheces.

a terra prometida - conto

A TERRA PROMETIDA

A bala percorreu todo o meu peito e alojou-se ao lado da quinta vértebra cervical. Os estilhaços queimaram a medula. Quando vi todo aquele sangue sujar a camisa, depois a poça debaixo de mim, pensei na morte de meu avô, trucidado pelas navalhas e pontapés de seus ex-partidários. O vermelho vivo ia descendo morno na calçada em que eu fora alvejado, e a madrugada trazia-me a dúvida atroz e insana sobre minha vida. Tentei contar algumas estrelas, mas o céu escureceu demais. Acordado, sabia que tinha sonhado, mas aquela parede reluzente, de frios azulejos brancos me dizia o contrário; eu estava ali, semimorto, intubado, com algumas dores, porém, a angústia era maior e me cortava o restante. Como cheguei até aqui? Eu sabia certamente, no entanto, preferi dormir e imaginar-me longe, bem longe.

Casei com Lenita aos vinte anos. Ela tinha quase dezessete, e era um sábado à noite. Fizemos uma pequena comemoração na casa de uns tios dela, e viajamos para uma casa de veraneio emprestada por seu padrasto. Ela o odiava, mas não poderíamos desfazer daquilo que consideramos uma proeza magnânima, principalmente em se falando daquele sujeito avaro, desonesto e vegetal. Fizemos amor horas, dias seguidos; ela exalava um perfume natural, misturado a um gosto acre na boca, que me fazia ensandecido e maravilhado apreciador de seu sono. Ela ronronava como um gato ao dormir. Tudo acabou quatro meses depois, quando reencontrei uma antiga namorada e Lenita ficou grávida. Os sete meses de uma gravidez complicada, passei ao lado daquela que eu poderia chamar de amante; prefiro chamá-la de anjo presente, que vez ou outra me reaparecia em sonhos. Meu filho nasceu num dia de chuva forte. Seus olhos lembravam os de minha mãe. Viveu apenas doze dias. Meu calvário não havia começado. Tive muitas perdas, e aquela com certeza não seria a pior delas. É melhor perder um filho do que se perder, disse um amigo embriagado, e eu acreditei nele, e ele estava certo.

Passei quatro anos na faculdade de teologia, e terminei abrindo meu próprio negócio: uma locadora de vídeos. Lenita havia concluído um curso de tapeçaria, e dava aulas para crianças numa escola pública. Eu ganhava o dia vendo e indicando filmes. Era um deleite, até o dia em que perdi completamente minha fé. Sempre fui um descrente convicto, mas para não contrariar demasiadamente meus familiares e minhas namoradas, fingia que acreditava em tudo: OVNI, astrologia, vidas passadas, deuses, visões noturnas, casamento. Não preciso contar porque casei, nem porque resolvi estudar teologia, mas... Eu precisava afugentar os meus demônios de milhões de cabeças. Eu precisava atuar. Numa quarta-feira de cinzas, a minha devota esposa e sua amiga predileta saíram de casa juntas às cinco da manhã; foram ver a primeira missa do dia. À tarde, ela voltou com um olhar desconfiado. Nessas horas, as mulheres são as melhores, mas Lenita sempre foi uma péssima atriz; nem fingir orgasmos ela sabia. O padre Nicanor, mentor de uma série de crimes contra a castidade, resolveu dizer que amava a minha mulher na terça-feira de carnaval um ano antes. E naquela dita quarta-feira, eles juntaram mais cinzas sobre um ano de relacionamento. Descobri tudo quando ela voltou cansada da missa da sexta-feira santa, disfarçando sua paixão e seu concubinato com o sacerdote mais abjeto que aquela cidade já vira. Cheirava mal, comia como um porco, vestia-se como um franciscano, de marrom e sandálias de couro surradas, embora não pertencesse a congregação nenhuma. Um néscio sem medidas: não sabia latim, apenas o que aprendera em sua aula com os padres lazarentos; não entendia de arte, nem a sacra; história para ele, somente as da carochinha. E doidivanas. E feio. Barrigudo, suava como um bode, dentes separados, mãos pegajosas e frias. Meu ódio por Lenita só aumentava quando eu o via. Meu resquício de fé infante esvaíra-se desde meu catecismo, quando vi um bispo olhar para as calcinhas de minhas colegas. Atordoado com minha descoberta, em um olhar ele me mandou para o inferno, e hoje estou contando essa história como prova disso. Eu, que não acredito em muita coisa, senti-me fulminado pela sua falsa artimanha em ser puro e casto. A crença na criança que eu era, a crença no adulto que eu pensava ser, a crença no velho que uma vez eu tinha sonhado acabara no instante em que minha doce e escrava Lenita me confirmou o caso e jurou separar-se de mim se eu contasse. E de tão vil e fraco, eu me calei. Não sei bem as razões. A bebedeira me esperava, a bancarrota nos negócios também, e o ciclo natural das coisas me deu outra guinada e me mostrou o quanto é fácil ser indulgente. Difícil é manter-se louco e seguro. Dia após dia eu me trancava na locadora, assistia a filmes do cinema mudo e, depois, me masturbava com qualquer vídeo caseiro pornográfico. Masturbava-me duas ou três vezes, isso dependia do meu tédio e de minha falta de sono do dia. Naquele meio tempo, Lenita urrava dentro da sacristia, crente em deus e no amor eterno. Os crucifixos, turíbulos, hóstias, imagens de santas e de santos olhavam a tudo petrificados. Hosana nas alturas! Algo ainda restava de paraíso.

Aos domingos, próximo a um ascetismo, eu ia para a praça ver a bobagem ambulante daqueles meus conterrâneos. Eu saía apenas de minha quase deserção porque tinha fome e sede, e não era adepto aos jejuns, nem faquir buscando a eternidade. Cães, gatos, pássaros, insetos, gente, tudo aquilo era um zôo. Tudo aquilo era circo para os meus olhos. Eu era engraçado e infantil. Achava ainda aquilo interessante: uma poesia atrás da outra em meio ao mar de hipocrisia e doença. E a principal doença era o homem. Meus clientes me abandonaram, meus parentes saíram da cidade e outros que ficaram morreram, minha sanidade começou a virar pó, e outro começou a rugir. Bebia de terça a domingo: cachaça. Na segunda, tentava me curar da ressaca com analgésicos, caldos de carne e cerveja sem álcool. No meu aniversário de quarenta anos, chamusquei o rosto com um pedaço de farpa acesa e queimei alguns pêlos do braço. Outro dia, inventei de pular bêbado no rio; tive apenas contusões e cortei a cabeça, um pouco acima da nuca. Padre Nicanor pensou em exorcismo, quando disseram que eu estava gritando à noite no cemitério, sentiu-se levemente culpado, mas como ele não acreditava nem em exorcismo, tampouco em pecados, resolveu deixar-me de lado e passou a dar continuidade ao seu plano de beatitude: deixou minha mulher. Eles completavam bodas não sei de que, quando ele, vestido de arrogância e de terno bem passado, disse que não dava mais, que era tudo mentira, que aquilo era tentação de satã, que as coisas perderam seu rumo, e que ele era um homem a serviço do Homem. Lenita chorou mais do que no dia em perdemos nosso Gabriel. Seus olhos vermelhos e inchados não me causaram pânico nem asco, e seus lábios tremulantes diziam que a febre tomara conta de seu corpo; caiu doente por duas semanas. Purgatório, ela pensava, eu estou no purgatório. Muitas histórias terminam com suicídio e a minha não vai ser diferente, disse, olhando-se friamente no espelho. Tomou duas pílulas de vitamina, seguidas de um café amargo e saiu destinada a morrer.

O arcebispo havia convidado o padre Nicanor para vigário de uma grande matriz em outra cidade, e lhe deu o cargo de vice-diretor da Escola dos Filhos de Maria. Aquilo fora a gota d’água para Lenita, e seu intento estava cada vez mais sedimentado em sua cabeça. Os dois se reencontraram após muita insistência da obstinada mulher traída; ela sabia que o padre tendia à homossexualidade, e aquela fuga repentina somente lhe confirmara isso. Pediu um emprego de secretária da paróquia e de cozinheira nas horas vagas. Os clérigos concordaram, mas o coroinha sabia que algo não cheirava bem, e não era o padre Nicanor, pois passou a usar perfume francês, presente do famigerado arcebispo Ângelo Miguel, um homem de posses e de poses importantes. As narinas de Lenita estavam cheias de ódio quando serviu o café da tarde. Era véspera de carnaval, e suas veias do pescoço e das têmporas não paravam de inchar somente em pensar na data. Nicanor dormia numa rede, roncando como de costume. Ângelo cochilara lendo a revista de fofocas da semana. Tudo estava pronto. E o café quentíssimo.

Ainda hoje, não sei a ordem correta dos fatos, entretanto, proponho uma breve descrição do rumo que tomaram as coisas. Padre Nicanor morreu de parada cardíaca antes de chegar ao Hospital da Graça; tivera um colapso nervoso numa semana de estresse e cobrança da Sé, e depois de comer bastante torresmo no almoço, segredou a um seminarista sua paixão por ele; morreu sem ser correspondido. O arcebispo tornou-se cardeal em Roma e aguarda a morte de um outro para ganhar a vaga de reitor de uma universidade católica para filhos de rico; sua obsessão por dinheiro trouxera-lhe dívidas e encontros furtivos num prelado recém-formado por sacerdotes fugidos da Santa Igreja. Eu perdi o resto do nada que eu tinha e fui parar na casa de um gago que me contava piadas todos os dias. Lenita desistiu da igreja e assumiu seu verdadeiro papel: foi mãe de dois meninos, mesmo sem saber o autor do crime da paternidade. Dizem que parou de se vender. Eu não acredito em fantasmas, já disse.

E o autor dos disparos? Esse foi um apaixonado e contumaz freqüentador de uma casa de massagens em que minha esposa trabalhava. Dava-lhe presentes, ofertava-lhe flores, escrevia-lhe poemas em forma de acróstico. Um romântico piegas e inveterado. Soube que ela havia casado, e numa dessas conversas de fim de noite após o sexo perfeito, ele confessou sua paixão e pediu que ela se divorciasse e que abandonasse tudo para fugir com ele. Um ‘não’ foi a resposta exata e seca que estrondou no quarto. Ela lhe deu alguns outros motivos: a gravidez, a culpa por ter me deixado, um amor platônico por uma pessoa comprometida; ainda assim ele estava disposto a tudo. Por fim, deu-me três balaços de presente. (Um, vocês já sabem. Os dois outros penetraram o muro) Havia pedido a deus uma mulher que lhe fizesse crer no amor novamente, e encontrou Lenita, mas arrasado pela desfeita dela, resolveu tomar satisfações com aquele que ele julgara culpado por todas as mazelas, arrependimentos e frustrações que a linda mulher de seus sonhos carregava. Também perdeu a fé, e vive pedindo esmolas na estação de trem, dizendo-se um ateu que sabe latim; virou brinquedo dos outros mendigos e das crianças pedintes. Lenita aguarda a sentença como cúmplice de um crime que não cometeu, e nem sonhou em faze-lo, e a sua maior culpa é não ter se matado com a mesma arma que o terrível coroinha me alvejou. Sim, o desgraçado fora um coroinha atrevido e perdido pelos arroubos da paixão. Encontrara a arma remexendo o guarda-roupa de Lenita, visto que buscava provas sobre o envolvimento dela com o padre: cartas, bilhetes, qualquer coisa.

happy hour - conto

HAPPY HOUR

Saí de casa, como de costume, às sete e meia da noite. Cadu me acompanhava com seu andar enviesado. Dei duas tragadas no cigarro e joguei a guimba perto da lixeira. Do outro da lado da rua, que era sem saída, dois rapazes, entre catorze e quinze anos, também tragavam. Olhavam-me assustados, como se levantassem suspeita de algum crime. Eu dirigi-lhes um olhar de certo desprezo, mas tentei compreendê-los: aquela era a época da vida, quando não se precisa de fuga. Os dois sumiam meio à fumaça toda, seus olhos se perdiam na penumbra. Cadu latia inocente, contemplando o fim da rua e a lixeira repleta de restos de comida. Todos os dias, eu saía para passear com ele; era o único momento em que eu podia parar e pensar em coisas amenas. Era o único momento em que eu não podia me considerar vítima de minhas decisões. Contudo, parecia em vão, pois eu logo teria que voltar ao meu quarto, à minha sala, aos lamentos e gritos de minha pobre mulher, aos pedidos e choros de meu pequeno filho, ao fundo do prato insosso em minha cozinha. Lá fora, eu conseguia fugir, mas eu ainda teimava em sonhar em fugir realmente. Pobres daqueles lá dentro, eu não os culpo. Eles não têm culpa; eu sou o seu algoz. O cachorro lambia meus sapatos gastos e cheirava a bainha de minha calça velha. O nó em minha garganta parecia mais apertado do que o da gravata, uma falsa italiana. Eu mentia, mentia e sabia disso, mas mentia mais ainda para que ninguém soubesse. Lambendo a minha imunda sola do sapato ou as minhas mãos, Cadu sabia de tudo; seus olhos eram censores, mas se calavam ante meu compadecimento. Eu me compadecia com todos, comigo, com ele, e com os outros lá dentro, além dos meninos se perdendo naquela nuvem de fumaça. Andei até a esquina, procurando esconder-me, procurando engolir aquele nó, e a dor de imaginar continuando, repetindo tudo de novo, me deixava em pânico. Algumas menininhas desciam de bicicleta a rua que cruzava a minha. Elas sorriam, e como eram lindos e sinceros os seus sorrisos! Elas pedalavam, seus cabelos esvoaçavam, e a noite lhes protegia dos maus pensamentos, ou talvez a tenra idade? Elas descobririam um dia os seus algozes ou suas vítimas. Meu cachorro latia para elas, e elas em retribuição lhe davam o afago na cabeça e puxavam de leve suas orelhas. Minha sombra ao lado do poste parecia acreditar... acreditar... Os rapazes saíram da escuridão e acenaram para mim desconcertados. Um deles parecia o meu primo falecido há dez anos. O outro tentava parecer com o outro, nos gestos, na postura, no tique nervoso. Cadu me puxou para a casa, ele sempre me lembrava de voltar à realidade. Procurei no bolso mais um cigarro, algum trocado, e encontrei apenas restos de papel picado. Joguei-os fora. Ele latiu. Peguei-os um a um, e os pus finalmente na lixeira. Meu cachorro era educado. Voltamos para casa. Cadu parou de balançar a cauda, pôs a língua para dentro e rosnou baixinho. O inferno nos esperava, ou quem sabe um paraíso perdido?

momento - conto

MOMENTO

Enquanto a água do chuveiro caía em seu corpo ensaboado, eu pensava no infinito de certos momentos belos que ficam presos em quase nenhum lugar, exceto em poemas, telas e esculturas. Imaginava o instante em que o artista apruma-se diante de sua modelo nua e graciosa, diante da beldade que ele tornaria imortal. E nós dois ali parecíamos imortais, não que fôssemos artista e modelo, mas estávamos também perdidos, presos àquele minuto. Mesmo que o sol ainda estivesse por nascer, todos os riscos e dores pareciam valer a pena. Aquilo talvez fosse felicidade, ou coisa semelhante, no entanto, ousar dizer isso, poderia diminuir a tempestade de sensações em que eu me afogava. A paz de que falam os idealistas fazia algum sentido, ao ouvir o som da água, ao ver aquela nudez. Acredito que pude penetrar em sua alma e quase entender seu coração, mas ela me olhou, e o silêncio se desfez. Indagou-me o que olhava; eu apenas me esquivei com uma resposta pueril, mas franca. “Nós”, eu disse sorrindo. Ela sorriu em seguida e mandou-me um beijo, jogando água sobre meu rosto.
Servimo-nos de um quente capuccino; ela, enrolada à toalha, enroscava suas pernas às minhas, e seu olhar de malícia era desconcertante. Conversamos sobre nada, apenas sorríamos, permanecíamos calados, olhávamos para as xícaras, provávamos do café e nos olhávamos novamente. Seus olhos brilhavam, e pude perceber nitidamente que ficavam pouco a pouco inundados de lágrimas. Uma delas caiu sobre seu peito; ela enxugou e pediu que a desculpasse. Eu perguntei por quê; ela me disse que perdoasse as lágrimas e esquecesse aquilo. ‘São tantas coisas’, ela emendou, olhando-me com carinho. Eu disse que se pudesse, que se tivesse lágrimas, também iria chorar para acompanhá-la. E eu estava inundando em todas as lágrimas, minhas e dela. Ela sorriu e encostou a cabeça em meu ombro; sua pele cheirava ao perfume de meu sabonete. De súbito, levantou-se e disse que tinha que ir; concordei e ergui-me, abraçando-a. ‘Eu sei que isso pode parecer para você uma cena de filme romântico, algo bem clichê’, disse a ela, e continuei, perscrutando seu olhar: ‘Mas eu preciso dizer, preciso pedir que fique, pelo menos mais um pouco. Façamos valer o restante do dia, somente este dia, e nada mais. Que eu não vá ao trabalho, que eu falte à reunião de negócios. Eu preciso que você fique. Fique comigo; fiquemos juntos, só hoje.’ E ela placidamente me indagou, desvencilhando-se: ‘O que é clichê?’ ‘Eu’, murmurei quase pedindo que fosse embora; algo em mim se irritava, e então, dei-me conta que nada daquilo valeria a pena, nada daquilo valeria tanto, nada daquilo era especial, nada era de extrema importância, nem mudaria minha vida, nem a falta de sentido do dia. Era tarde, e ela precisava sair, voltar ao seu mundo, pagar suas contas, e eu precisava de tempo, de descanso, de preguiça, de moleza no corpo, de sono, da cama. Eu precisava voltar ao meu conto de fadas: meu mundo real e inteiramente feliz. Ela vestiu-se, escovou os cabelos e disse que deixaria em minha casa, em meu quarto, em minha pia, muitos de seus fios escuros, para que eu pudesse dela se lembrar. Nós sorrimos como duas crianças, e entendi que a vida era um circo, repleto de saltimbancos e de mágicos fazendo e refazendo a mesma cena, e tentando surpreender a platéia. E por mais que minhas conclusões fossem as mesmas de sempre, deu-me vontade de chorar e dizer que eu precisava de mais tempo com ela, que eu precisava mudar, que eu precisava.
A cama rangia, e eu estava envolto de seus braços lânguidos. Nossas vozes eram desnecessárias, assim como nossas dúvidas. Nossos olhos diziam tudo, ou escondiam o que realmente queríamos dizer e sentir. Abraçados no calor do edredom, ela me disse que sabia inglês, e eu pedi que falasse algo naquela língua. Imaginei de modo idiota que ela fosse dizer: ‘I love you’, mas isso seria encantamento demais para uma noite que não pertencia às fadas, nem aos contadores de história. Então, ela começou a dizer pausada e solenemente os dias da semana em inglês. Eu quis sorrir, mas apenas a olhei embevecido; vi a inocência ainda que por instantes. Ela concluiu e me abraçou; nós nos beijamos e adormecemos. No meio da madrugada, quase às quatro horas, passei a observá-la dormir; ela mexia, ressonava, empurrava-me na cama, roçava os dedos dos pés em minha perna; eu admirava tudo aquilo como numa tela de cinema. Se os anjos fossem anjos, todos estariam a dizer amém por aquilo, somente por aquele momento, ou talvez sussurrassem ao seu deus, pedindo que ele congelasse o tempo, que me deixasse morrer, que um dilúvio inundasse a cidade, e que somente naquela cama se encontrasse o único refúgio, que ela fosse a única saída. E os anjos permaneceram calados.
Quando a porta se fechou, tentei olhar para minhas mãos trêmulas. ‘Calma, isso é engano. Tudo vai passar. Durma, você está com sono’, disse a mim, ao tomar um copo de leite. O céu estava nublado e fazia um frio dormente. Deitei no sofá, ouvi o barulho da rua, senti a placidez da manhã e resolvi acreditar que tudo aquilo não passara de mais um sonho ruim, de mais um resultado detestável da bebedeira. Mas tudo continuava no mesmo lugar. E quem sabe os anjos tivessem me ouvido? E se começasse um verdadeiro dilúvio naquele segundo? Não, não poderia ser; era tarde demais, meu refúgio tinha ido embora sem agasalho, e começara a chover fortemente.

às vezes

ÀS VEZES

Às vezes, deveríamos nos disfarçar de alienados e assumirmos uma postura não-dialética, assumir a existência de um alter ego, íntimo, desacordado. A caverna é um habitat, isso não podemos negar. Sair da caverna é absurdo, é doloroso, é ofuscante. Tentar voltar para nos revermos, para assumirmos uma visão acrítica, sem temores, sem preocupações, sem desvelos, sem apegos. Como seria? O que seria do homem sem ele mesmo? O que seria da lua sem o sol? O que seria do pensar sem a antítese? O paradoxo pode confortar mais do que a idéia fixa. Reencontrar nosso eu preso aos grilhões da caverna, vermo-nos alheios à verdade é bem menos doloroso, menos infeliz, menos desgastante, menos tempo perdido, como esse gasto a escrever sobre isso. Conclusão nenhuma, apenas o divagar, flutuar, pairar. É disso que ainda se vive ou tenta-se. Viver de pedaços. Odiar enigmas, mistérios, quebra-cabeças, incógnitas é salutar, às vezes. Assim como, às vezes, sentimo-nos mais felizes com o consciente, com um ego forte, com um superego responsável e cumpridor de sua missão, além de um id descompromissado consigo próprio. Viver sob à penumbra da caverna pode ser absurdo, mas imaginar-se fora dela parece pior, ou melhor? Depende se ainda estamos lá dentro ou já fora. Viver sem causa ou conseqüência parece mais gostoso; é menos sofrimento mental, espiritual. Talvez, estejamos cegos. Os olhos espirituais deixam os olhos físicos errarem, às vezes. Assim como, às vezes, os olhos físicos cegam, ofuscando os olhos espirituais. A dor é imaterial, mas, sobretudo, dor. Cegos ou não, ainda dependemos de reaprender a conviver com um pé além da caverna e outro no interior dela, sem pudor, medo ou culpa. A caverna é um limite, assim como nós próprios e nossas perguntas. Às vezes, apenas, às vezes ...

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O empurrão que faltava

Hoje fui ao cinema. Assisti a um filme, sobretudo, instigante. Os contos proibidos do Marquês de Sade. Dentre as variadas discussões suscitadas pelo mesmo, como as perversões sexuais, o desejo incomum, o prazer através da dor e das maneiras mais inusitadas de obtê-lo, uma me chamou atenção em particular. Um dos personagens diz que "o homem é composto do bem e do mal, ninguém está isento disso." O que quero dizer com isso, ou melhor, o que isso me faz pensa? As inúmeras nuances humanas: a insanidade, o medo, a revolta, o prazer insatisfeito, o inconsciente em ebulição. Antes que eu fuja do principal objetivo que me impulsionou a escrever, preciso me deter a apenas uma dessas nuances: a hipocrisia.
Não falo da hipocrisia como uma palavra desconexa, falo da hipocrisia como uma característica do homem, principalmente o contemporâneo, revestido de uma vaidade e soberba dantes não imaginadas. Ilustro com uma pequena parcela do que me aconteceu. Na saída do cinema, tento ligar o carro, mas o "engraçadinho" não responde aos meus gritos nem lamentações. Resolveu me deixar ali, em meio aos carros buzinando, naquele mavioso estacionamento daquele shopping de reputação inabalável. Peço, então, ajuda a um dos funcionários responsáveis pela vigilância do estacionamento para me dar uma mãozinha, ou seja, um empurrãozinho para ver se o carro pegaria. Ele até foi gentil ao me responder aquele - até certo ponto doloroso e quase esperado - NÃO. Claro. Eu, um mortal cliente, estava a atrapalhar o trânsito de outros veículos que ali circulavam. O tal funcionário, na sua bondade, dizia que estava a cumprir ordens superiores, pois não era permitido fazer aquele tipo de serviço. Evidentemente que não. Aquela situação abalaria a reputação do shopping, de seus donos, ou dono, de seus clientes apressados, ricos, civilizados, de uma virtude incólume. Será que ninguém passou por situação daquela? Será que ainda se pode acreditar no homem? Em seus vícios ou virtudes? Será que fui errado em pedir ajuda? Será ...? Sem mais delongas, finalmente, três rapazes, funcionários de um supermercado, minhas últimas esperanças, vieram me dar o bendito empurrão.
O carro funcionou, mas ainda estou em dúvida se a hipocrisia dos superiores daquele shopping foi o cerne da reflexão ou um resquício de senso humano e fraterno daqueles três. Tentei até resgatar a crença no aperfeiçoamento do homem através da destruição das máscaras por ele criadas, da compreensão dele mesmo como ser falível, ser em construção. Continuo tentando, vivemos para isso, não é verdade? Hipocritamente, alguém diria: NÃO.

philosophia, poesia e afins

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25.6.05

bem e mal

O ALÉM DO BEM E DO MAL

Assim como todos os outros conceitos e expressões nietzscheanos, o ‘além do bem do mal’, primeiramente exposto no livro homônimo, concerne à vida como substância e finalidade para a superação. E onde está o além do bem e do mal? Acima, aquém? No além do conceito, no além da palavra, no além da moral pautada em ‘comando-obediência’, no além da negação do homem e da vida. E é terminante e demasiadamente humano. O ‘além’ de Nietzsche não é, já se disse, transcendental, sobrenatural, fantasmagórico, inteligível, niilista, perfeito, acabado, verdadeiro. Esse além é o infinito do homem em possibilidades. É o ultrapassar dos valores tacanhos, vilipendiadores da vida, do próprio homem. Não é tão-somente a crítica à moral paralisante, mas um cruzar de muitos céus, de muitos ideais; é o destruir de muitos ídolos, de muitas convicções ‘certas’.
Como descreve o filósofo, nesse livro, (p. 12): “Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal.”
É nesse eixo sem começo e fim que se funde a idéia de transmudar valores; é por essa senda periclitante e sinuosa que percorre o espírito livre, o imoralista, o super-homem; é nessa idéia que se perde e que se encontra, sem se prender ou desprezar-se, a vontade de potência. E nela se firma e se multiplica o homem; dela advém o homem como o seu próprio experimento e anseio de transmudação, de sobressair-se. E o que é o homem? A fonte e o desejo de vida; a soma e o esgotar-se; o bálsamo e a doença; o olho e o observado; a fera e a presa; o, eu, o si e o outro.

criados e tragos

CRIADOS E TRAGOS

apascentar a criadagem de dentro
revigorando com o trago do cigarro
e eles ruminam sonhos que não mais lhe pertencem
sonhos em desuso desatino
dá-me outro trago
que as cinzas me esperam
dá-me outra praga
que me venha como cura
a criadagem desavisada regressa
e prepara a festa pelo meu retorno
todos os dias retorno
e eles não me acham
dêem-me mais um cigarro
em troco de nada
nada tenho a não ser
o erro crasso claro cretino
de ser mais um nel mezzo del camin
vagando viajando vendendo
como esmola minha pele
meu riso meus nervos meu sono
meu sano sono sem pressa
meus santos
dá-me uma cigarrilha
para esconder na fumaça
o destino perdido e desacostumado
dá-me pão e água
para que não morra
para que rumine mais alto
e bravamente sem regalia
sem cantoria sem apelo
havia uma pedra
duas outras mais
avalanche de pedra e de gente
multidão
socorro, quero mais um cigarro
e fugir como cigano
e me acordem quando as cinzas chegarem
a criadagem dorme como gado à espera do açoite
como gado pastando
à espera.

1.6.05

21 gramas

Talvez a melhor resposta para os questionamentos do personagem interpretado por Sean Penn neste filme - 21 gramas - seja: A vida vale muita coisa. O que não vale é o quanto você paga por ela e o quanto você se desperdiça nessa tentativa. Que limites nos separam da morte que dilui todas as certezas antes visitadas e antes acreditadas? Como subverter a armadilha de nossa falta de redenção e de salvação. Leia Paulo Coelho, leia dalai-lama, leia a pilha toda da moda-mídia dos livros de auto-ajuda e tenha seus cinco centavos de troco. Isso vale mais que 21 gramas. Compre pastel na esquina e morra infartado numa noite tão bela e tão triste, ao som da Sonata ao luar de Beethoven. Isso vale 21 gramas. Desabar em pranto quando o incenso não nos fez esquecer os problemas mesquinhos de nossa existência. Isso custa 21 gramas. Deserção. Sofrimento. Solidão. Dinheiro. Sentimentos falsos jogados nos cassinos de nosso cotidiano e à venda no atacado de nossa televisão refrigerada e particularmente asséptica e feliz. Isso vale imensamente 21 gramas, sem mais nem menos. E somos mais? Que valores nos dão? Que valores temos? O que quer dizer o número 21? E quantos gramas nos sobram ao sermos enterrados numa grama que nunca vamos ver mais verde? Que sombras nos acompanham quando imbuídos de uma felicidade neutralizada pelo primeiro maremoto de tolices e desamores pela frente? Onde está a balança que nos avalia e que nos confronta com nossos olhos no espelho. O velho morre de caduco e de adoção do pelo tédio. Morrer. Calar. Definhar como a rosa na janela de um quadro esquecido. A natureza morta agüentando firme. Transeuntes em transe. Hecatombe. Vigília. Última dose de uma droga revigorante. Dêem-me a passagem para o lugar menos suave que o inferno e mais ardido que o paraíso artificial que nos damos e inventamos em nossas preces repetidas e em nossos desejos fartos e cheios de miséria. Soei falso? Taciturno? Bombástico. Poeira de palavras acres? Isso vale 21 gramas.

Para início de conversa

Esta saiu de uma metareunião que não chegou a quase nenhum lugar, a não ser este...

AULA INAUGURAL SOBRE A EXISTÊNCIA DE ESTUDOS SUJEITOS A OBJETOS TEÓRICOS E PRÁTICOS PARA A INFÂNCIA FELIZ E A VELHICE DURADOURA E DOURADA DA FACE REPLETA DE RUGAS SONHOS MASSAS E NENHUMA IDÉIA PRESA NA CABEÇA OU EM QUALQUER OUTRO LUGAR.
OU
A TEORIA SUBVERSIVA DO SER SEM PROBLEMA
OU O DELÍRIO DO EMPIRISMO BARATO
OU A SURRA QUE NOS DAMOS QUANDO CADUCOS OU AINDA SÃOS
OU
O TÍTULO À PROCURA DE UMA OBRA
OU A OBRA À PROCURA
OU MELHOR (OU PIOR)
A PROCURA

Coisa laboratorial a questão da droga
a práxis libertada da teoria
marcapasso da vacina
se não puser o lugar na falta ampliada
parole inutili
adequar-se à estrutura mental
ela fala até assim:
- estudos subordinados, famigerados
com objetivos diferentes
é o seguinte: seria, por exemplo,
qualidade de vida dos pacientes.
Sintomas: estudos retrospectivos,
Coleta de dados sem análise ensaiada,
Mas que trazem respostas adicionais
Ao nada de que somos derivados.
As questões abordadas:
Originadas na origem da questão original.
Dividir, planejar: subestudar.
Da diferença um título de nobreza
Nos é validado.
E tirado.
Seguindo os mesmos passos:
é uma questão essencial.
Replicar-se, complicar, calcular, excitar,
Explicando-se sem parar;
Não é a mesma metodologia.
O diferencial: categoria subumana estudada.
Um livro todo sobre isso, para que vou ler?,
E saberei de tudo.
Novamente, a pergunta original:
São essas coisas as importantes?
A própria universidade: como?
Um profissional maduro 24 horas com o paciente
Deleite de se divertir:
O nível tóxico da droga:
Só você pode perceber isso.
Funciona como advogado do diabo:
A questão da ética,
Não uma questão de protocolo.
Como ser? Como não ser?
Como ser não-ser? Como não-ser?
É contraditório: esta visão está mudando.
Necessária é a observação da evolução do câncer.
Algo que se vivencia: veja bem:
- câncer! Algo que se vivencia e que não se vê bem,
nem se sabe onde, nem por quê?
Desenvolver o senso crítico é interessante.
Comecei a estudar tais linhas pelo avesso:
Aprendi a ler: há uma cadeira com metodologia científica.
Nela não sente, e sinta.
Publicar, eis a questão; senão não se recebe o diploma.
Você não sabe, você não sabe.
Você não sabe que é nem se é, e já foi.
Será autor do seu trabalho.
Ou co-autor?
Ser igual. Igual. Como não-ser?
Uma via de mão-dupla: a nossa proposta é essa.
Forma de avaliar a fôrma de onde não se ultrapassa:
Avaliar a nossa produção.
Como ser não?
Há de haver no comitê alguém que dê um auxílio.
É uma via de mão-dupla.
Mas só se precisa de uma: aquela que dê auxílio
Ou um adeus menos miserável e nulo nos eixos
Das operárias abissais.
E se não der? Como ser não-ser?
Essa parte, essa parte específica:
A quem cabe? Quem vê? Quem lê?
É desgastante. Você pára. Você espera.
Mas...
Com isso, você espera que essas coisas não aconteçam mais.
E nada acontece mesmo, só o mesmo.
Vai ser uma ajuda mútua.
Algo a comentar?
Peço desculpas. A gente vai terminar.
No começo. Como não saber e não ser?
É uma ajuda mútua: é tão interessante.
São coisas simples: uma coisinha pequena. Urge cuidado.
Ruge. Foge.
Por exemplo: máscaras, materiais, sacos plásticos, densidade,
Ambiente fechado, tempo correto, solução adequada, formulário.
Não cresceu nada: isso reforça uma das teorias atuais.
Se artigo guardado, em contato com água,
Perto do fim da validade: o que é que se faz?
É a embalagem. A integridade. O tempo.
Avalia-se o nosso trabalho e pronto:
Medida de segurança.
Camisinha nas camisas-de-força.
E se a máscara descola?
A camisinha estoura?
As camisas fora do campo de força?
Parada cardíaca.
São coisas simples, bem simples,
Mas são estudos, estudos.
Leia. Como não ser? Você não sabe.
É? Seja? Você foi.
Como fazer. Você não sabe como não-ser.
Alguma coisa mais?
Gente, então, até a próxima.
Você foi fomos somos e vamos
Mesmo sem ir.